O que vive é espesso

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Em “O que vive é espesso” (título retirado do poema O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto), Maria Laet apresenta uma nova safra de trabalhos criados à partir dos desdobramentos de suas pesquisas e reflexões anteriores. A memória das coisas, a noção dilatada de tempo e espaço, as vizinhanças sensíveis do nossos corpos com os fluxos do mundo natural e o afeto pelo efêmero são todos dados que Maria vem trabalhando e que ativam nossas sensibilidades ao nos depararmos com sua produção.

Neste momento de sua trajetória, Maria propõe novas formas de se colocar à disposição desses fluxos do mundo. No poema de João Cabral, é a imagem do Cão Vivo e sem plumas que ativa a metáfora do rio Capibaribe dentro da memória do poeta. Ali, na tessitura do poema, o que vive “incomoda de vida o silêncio, o sono e o corpo”. Eis porque o que vive é espesso. Ao ler isso, Maria se apropria com os olhos livres das estrofes cabralinas e escava em sua obra essa ideia ao mesmo tempo difusa e precisa da espessura. É espesso aquilo que ocupa de forma silenciosa porém densa o espaço entre nós e o mundo, entre nós e o outro, entre nós e as coisas, entre nós e a arte. Esse princípio está disseminado em cada obra, se fazendo presente na espessura denunciada no seu peso em pedra, na espessura minima de duas mãos entrelaçadas pela sobreposição da monotipia, na espessura turva da relaçao tensa e sempre incompleta entre as palavras e as imagens.

Apesar das novas materialidades e suportes explorados nesta exposição (pedras, cadernos, video, slides), Maria mantém sua capacidade pouco comum dentre artistas da atualidade ao escorregar do aspecto espetaculoso e da necessidade de dialogar com grandes escalas de objetos e materiais. Seus trabalhos dão mais um passo além na sua relação poética com o mundo e com os elementos da natureza, articulando com astúcia e inquietação suas forças e fragilidades em permanente movimento.

No lugar da dispersão da água sobre tecidos ou da aleatoriedade do vento que conduz o balão desenhista, referências presentes em alguns dos seus trabalhos anteriores, Maria agora encontra na solidez das pedras um espaço fresco para pensar esteticamente a passagem do tempo e a questão da superíficie. É no contato engenhoso de seu corpo com a lenta memória das pedras, é na relação de certa ideia pictórica com o aspecto efêmero do toque das mãos embebidas de tinta preta, é, enfim, na aposta da palavra como esse espaço pleno e, ao mesmo tempo, efêmero, que vemos seu roteiro de ideias. Porque é muito mais espessa a vida que se desdobra em mais vida. E é isso que Maria Laet nos apresenta: uma vida desdobrada em mais vida, sua vida estética desdobrada na vida (in)animada do mundo, vida cujo dado espesso é a passagem do tempo, a gastura da matéria, a circularidade das imagens, a instauração, enfim, de uma transparência onde o que impera é a opacidade de nossos olhares.

Há aqui nestas obras um convite para que deixemos lá fora a sensação de que temos o tempo e o corpo sob controle cartesiano e mergulhemos na transparência espessa dessa vida plena de espaços vazados em dentro e fora. Fina camada de certeza que se rompe quando lembramos que a pedra, as mãos, os olhos, o corpo, o mundo, tudo pode ser visto através de outros pontos de vista. Maria nos apresenta silêncios lotados de eloquências imagéticas. Espessuras costuradas e sugeridas de forma frágil e, talvez por isso mesmo, potente. Lembrar que estamos vivos para além do significado prático das coisas. O Cão Vivo é espesso. A pedra traz na sua superfície lisa e sensual talvez um século do tempo de tudo. A pedra é espessa. A arte ainda procura seu não-lugar no mundo dos homens. O rio, a pedra, o cão, as mãos, o vazio, o oco da linguagem, a persistência da memória, nada escapa do fio lírico da vida-olhar de Maria. Pois foi ali, no gesto mais simples, na imagem mais seca, na passagem irreversível das coisas através da história que ela achou vida. Justamente ali, onde tudo que vive, ao mesmo tempo que é fugaz, é espesso.