Maria Laet
Sem Título (Serie Diálogos. Balão e Corpo), 2007 (Camberwell College of Arts)
Sem Título (Serie Diálogos. Sopro), 2008 (House Gallery, Camberwell)
A contribuição de Maria Laet para esta exposição consiste em dois trabalhos, cada qual por sua vez contendo duas partes, desenhos e fotografias. As fotografias indicam processos específicos utilizados para marcar com tinta o papel; explicam, até certo ponto, como são feitos os desenhos. Para além de uma relação de reflexão de um meio sobre o outro, as fotografias e desenhos apontam para sua produção dentro de um contexto de colaboração. Dessa forma, tanto fotografia quanto desenho poderiam ser compreendidas como remanescentes de um ato realizado pela artista e por seus colaboradores, uma experiência da qual o espectador como tal encontra-se excluído. Tal ato, no entanto, encontra sua motivação na produção de um conjunto de imagens, destinado por sua vez a permanecer para além do próprio ato, e a tomar as rédeas de sua própria duração.
No caso de Sem Título (Serie Diálogos. Balão e Corpo) (2007), um destes colaboradores não era um corpo humano, mas um ‘quase-corpo’ composto por balão, gás hélio e barbante. Esta amálgama de partes não cabe na definição de objeto, e tampouco encaixa-se no caráter controlado, previsível e mecanístico que o termo aparato sugere. Afetado pela movimentação de Laet, o balão arrasta a tinta ao longo da grade de papel disposta sobre o chão. À interferência da artista soma-se uma série de trocas entre este quase-corpo e o espaço físico que o cerca, o deslocamento do ar contrabalançando a tração da gravidade: o hélio contido e o barbante caído potencializando uma forma específica de se produzir marcas sobre o papel. O termo ‘quase-corpo’, com o qual eu descrevo este colaborador não-humano, é originário das tentativas por parte de filósofos da Antigüidade de conceber a fisicalidade dos deuses, uma resposta lingüística ao paradoxo de sua pressuposta semelhança conosco: equivalente, mas não exatamente idêntico ao corpo humano. Mais recentemente, foi uma palavra utilizada pelo poeta Ferreira Gullar para descrever o trabalho de arte neoconcreto. Tais trabalhos eram não somente objetos, mas ‘não-objetos’; eles incorporavam a dimensão subjetiva através do relacionamento com o espectador; mas eram também imprevisíveis e incognoscíveis, extrapolando a experiência particular de cada espectador. O trabalho neoconcreto, como nos Bichos de Lygia Clark, parecia de uma contingência inesgotável, constantemente convidando à experimentação; quase um corpo, quase um outro.
Na produção de seu mais recente trabalho Sem Título (Serie Diálogos. Sopro), o colaborador não é mais um quase-corpo, mas um amigo próximo. O que une Laet e seu parceiro é seu engajamento mútuo nesta tarefa específica: criar um desenho soprando, cada um, uma pequena porção de tinta sobre o papel. A tinta, por um lado submetida ao ato de expirar, é também sujeita a outras forças físicas, como a evaporação e a absorção. Ela seca rapidamente, tornando-se uma imagem na superfície, mas uma imagem simultaneamente estendida para além do primeiro plano, já que a tinta se deixa embeber através das páginas do bloco. O número de páginas por fim exibido torna-se assim uma medida da duração desta imagem.
Seja na grade sobre chão, ou no interior do caderno, o espaço da página é um elemento constante em cada um dos processos colaborativos descritos acima. Cada experiência colaborativa integra, portanto, o meio através do qual ela mesma será representada. Dessa forma, cada processo antecipa, incorpora e acomoda a consciência de seu fim. Para Laet e para os outros dois (um atrás e outro na frente da câmera) cada trabalho tem um caráter de experiência e participação. Para os espectadores seguintes, o trabalho se constitui no espaço de cada galeria, num momento ulterior ao evento, no agora de nossa observação. A participação passada, o ato de criar fisicamente o trabalho, não possui privilégio sobre o ato de reagir à forma que o trabalho agora assume. Dentro dos parâmetros expandidos do trabalho, tanto a performance e quanto sua representação encontram-se numa relação de equivalência. O fazer de cada trabalho, abarcando as forças e os elementos contingentes compreendidos neste processo, é transformado num conjunto finito de imagens, subtraído deste ato segundo os limites estabelecidos pela página ou pelo visor. Dentre as imagens produzidas, algumas são selecionadas, montadas e exibidas. A transformação de colaboração em imagem em exibição constitui uma redução, mas também uma ampliação, e seu impacto [affect] depende da particularidade de cada imagem.
Nos desenhos compreendidos em Sem Título (Serie Diálogos. Balão e Corpo) (2007), a manipulação realizada por Laet para atingir a forma final de cada um não é uma operação realizada completamente às cegas, e sim advinda da interseção de uma série de golpes de vista; sua atenção equilibra-se entre as marcas engendrando-se no chão, a antecipação dos gestos do balão e os gestos com os quais ela própria reage. A direção e velocidade do movimento recíproco entre Laet, balão, barbante e tinta inscreve-se e pode ser lida na densidade de linha e marca, nos momentos de fluidez e interrupção do curso de tinta. O espectador poderia, ao observar cada desenho, discernir entre a abstração de um apanhado específico de movimentos, e poderia também, a partir deste fragmento, reconstituir o evento que resultou em sua produção. Em cada desenho, a composição atua no sentido de tensionar as bordas, já que são todos partes de um desenho maior anteriormente grafado sobre o chão sem levar em consideração a demarcação própria de cada página. Uma vez subtraído desta grade, cada desenho torna-se um recorte, suas linhas estendem-se aos limites e ampliam o espaço da página, apontando para o que está (ou que pode ser imaginado como estando) para além dela. Esta sensação [affect] repete-se na composição dos recortes fotográficos, e corresponde a um fazer imagético já emergente numa série anterior de desenhos em grafite sobre papel (fig. 1), onde as figuras são afastadas em direção às margens, de modo a permitir que o fundo em branco domine o espaço da página.
As marcas produzidas por Sem Título (Serie Diálogos. Sopro) permanecem então na superfície enquanto uma porção central de tinta é soprada a partir de lados opostos. Como numa réplica do ato de respirar, a tinta cria uma imagem através do movimento para dentro e para fora; obedecendo à força do revezamento de sopros, ela forma caminhos que alternadamente sobrepõe-se e divergem uns dos outros. Como Sem Título (Serie Diálogos. Balão e Corpo) este é um trabalho que acomoda tanto a experiência em si como sua representação em um campo ampliado do fazer artístico [an expanded field of practice]. A diferença explícita neste trabalho é a proximidade física e pessoal entre seus colaboradores. A intimidade dos dois atores deste diálogo é inscrita na forma da imagem por eles produzida, e é também inscrita como memória pessoal. Tanto este diálogo quanto sua imagem, no entanto, extrapolam o momento colaborativo de sua formação. Imersa na aparente plenitude de uma colaboração íntima, persiste o inevitável processo de separação, rememoração, compartilhamento, partilha e relato [re-telling] de uma experiência conjunta. Página e fotografia acomodam a passagem gradual do ato conjunto para um estado modificado, e em modificação, como memória. Este processo se reflete na passagem da imagem desenhada em conjunto, que transborda, absorvida e transformada, por entre as camadas de papel em seu caminho.
Dr Isobel Whitelegg
Research Fellow, TrAIN
— Tradução: Sérgio Martins
Untitled, 2007 (Camberwell College of Art)
Untitled (from the series ‘diálogo’), 2008 (House Gallery, Camberwell)
Fig.1