Parece ser que na espuma delicada que um qualquer gesto deixa gravado nas vastas hostes da memória, habita ainda – remotamente congelada -, a intenção inicial e clara desse primeiro impulso. Mas esta primeira acção encontra-se agora, também, já reunida e unificada com o seu percurso incerto: com o efeito que o seu próprio corpo activo fez no mundo. Assim, a superficie que acolhe mas também transforma essa intenção/mensagem numa outra coisa já corporizada – essa clara fronteira que separa mas também dá expressão -, não só determina e viabiliza, como interpenetra e adultera, sempre, a acção primeira, a original, inicial.
(A fronteira/distância exterior é também tela e superfície: como duas personagens disponíveis e perversas de uma só potência, reinando sempre, condicionantes e absolutas.)
Esta fusão/metamorfose incontornável – de um meio/suporte a condicionar e a integrar qualquer conteúdo, objecto ou mensagem –, sublinha a eterna e primordial separação entre o Sujeito e o Mundo, a emoção e a palavra, a ideia e a acção, o Eu e o Outro. Mas claro, este palco transformador é também, como bem sabemos, o eficaz e imprescindível mensageiro imediato do mundo físico: o que une e aproxima essas duas fundamentais dimensões do real. Duas potências que estariam – julgamos nós -, de qualquer outra forma, eternamente divorciadas. E assim afastadas: numa distância longínqua e cristalizada, sem apelo, caminho, possibilidade; ou concreta saída ou solução, de encontro conjunto ou de expressão.
Então, será Pela Superfície – nela, mas sobretudo através dela -, numa valorização poética e de facto do paradoxo cruel da relação entre a forma e o conteúdo; na aceitação crítica – profundamente criativa mas também resignada e contemplativa – dessa limitação condicionante; que improvisaremos encontros e discursos, olhares e relações, criações e respostas. Assim, projectaremos a nossa vontade maior no mundo: em espirais de intenção, força e beleza, de alcance e efeito incerto mas real. Como sementes nascendo soltas num campo aberto, na paisagem maior e condicionante, de uma larga natureza impura.
Então, em ensaios feitos num teatro nosso que também queremos verdadeiro, pois íntimo – de troca, dádiva, entrega e expressão -, olhamos, por vezes surprendidos ou deslumbrados, como se define noutra forma a nossa palavra; como se lê diverso o nosso gesto; como se recebe alterada e gasta a nossa acção.
Seja objectivamente – na própria superficie/suporte físico que lhe atribui e acolhe o corpo -, seja no indivíduo outro que nos escuta e olha, atento e disponível, lendo, interagindo. O mundo, o fora, é a resposta totalizada do que investimos, sentimos, e mais lhe entregamos.
E é então também sobre tudo isto que trabalha e discorre Maria Laet, em processos diversos e delicados dos quais por vezes apenas nos revela o breve efeito ou resultado; na enigmática e subtil delicadeza de quem partilha, bem devagar, um segredo maravilhoso, precioso, e só seu.
Aqui encontramos assim, em Pela Superfície, alguns elementos activos que atravessam o curioso processo de fazer da artista, e que vão habitando o seu trabalho – diversamente expressado em várias disciplinas, meios e práticas performáticas. Estas obras são como que meras manifestações surgidas de um único criar, experimental, aberto e dedicado; e em que o suporte – a superficie -, simboliza e encarna a soma pragmática resultante dessa interacção e conversa, numa intersecção final, orgânica e bem viva. Na transversalidade que se revela neste conjunto, reconhecemos uma prática poética delicada e minuciosa, o contemplativo reconhecimento da beleza orgânica dos elementos, vestígios claros mas distantes da memória, e uma temporalidade lenta, intensa, e espessa
Apetece nalguns casos entrever a acção que levou à obra, como em Sem Titulo (Série Diálogos, Sopro), resquícios de encontros a dois com tinta preta a servir de veículo; ou em Sobre o que não se contém, percurso afundado e transbordante de uma linearidade suja e questionada em dentro e fora. Mas é de facto sobre o que fica, sobre o silêncio depois do gesto, sobre a marca depois do toque, sobre o eco mudo da palavra escrita, sobre o que se toca, e se funde, e se separa depois, devagar, que navegamos ao percorrer estas obras.
Na rigorosa formalidade do seu processo, que encorpora claramente efeitos e elementos da mais incontornável exterioridade, a artista realiza um fundamental afundamento/encontro na sua mais íntima realidade. Através de acções e propostas bem concretas, mas poéticas e libertadas; através da projecção de uma vontade firme e consciente – mas curiosa, aberta e disponivel -, e bem sabedora da sua muito natural mutação pragmática, de uma sempre inevitável chegada a uma outra realidade, já realizada.
Através da Superficie vamos chegando devagar a um âmago importante qualquer das coisas, dos gestos, das parcas palavras que perdemos e possuimos, escorregadios verbos de mais a cantar tão pouco. E nos resquícios que ainda sobram e se erguem devagar das sombras nos revemos, encontrando nessa mirada a cor verdadeira do que ficou por demais fazer, repetição ilusória e fraca de uma memória preta e baça, como as palmas de duas mãos perdidas, juntas, bem no centro de um espaço em branco.