Pedra Vão

 

A obra de Maria Laet possui uma sensibilidade que às vezes pode parecer enigmática. Ela se interessa pelos materiais, em seu estato imediato, cru, nas suas características de coisas, mais do que na sua transformação pela ‘mão’ da artista. No entanto, estes materiais não são apresentados como ‘ready-mades’ no sentido tradicional da história da arte. Há um afastamento inegável entre a mão e o objeto que surge do interesse que Laet tem pelos desenhos ‘acidentais’ causados seja pela natureza ou por ações específicas. O que interessa à artista não é tanto a negação da autoria mas uma afirmação de um estado apurado de sensibilidade para com a coisa, a substância, a superfície ou mesmo para com o objeto. É portanto essa sensibilidade que informa a maneira pela qual essas obras, esses objetos, são apresentados ou interagidos.

Escolhido pela própria artista, o título desta exposição me parece um lugar apropriado por onde começar a explorar certas operações que geram o trabalho ou que são lançadas por ele próprio. Em português a palavra ‘vão’ contem uma ambivalência que neste caso específico talvez escape a atenção até mesmo de leitores brasileiros. Ao primeiro olhar, embora um tanto estranha a juxtaposição com ou contra a palavra pedra, o termo vão parece significar um espaço vazio, uma fissura, uma abertura. Vão, entretanto, é tambem o presente da terceira pessoa do plural do verbo ir. Ao lado da palavra pedra este termo estaria gramaticamente correto apenas se expressado no singular: a pedra ‘vai’ ao invés de a pedra ‘vão’ como no título. Pedra Vão parece portanto fazer maior sentido gramatical quando o vão opera como um substantivo masculio. Apesar disso, a juxtaposição entre as palavras pedra e vão permanece estranha, pois não há sentido explícito além das significações individuais. Para complicar a questão um pouco mais, quando usado como adjetivo, ‘vão’ possui outros múltiplos significados, que vão de fútil e frívolo, a falsa e vã, qualidades estas que um cínico poderia muito bem atribuir à atividade de arte em geral. Tal acusação seria no entando contraprodutiva pois o poeta com sua ironia e esperteza argumentaria que desta forma, o singular, a obra individual, é posta em relação ao todo, com a categoria arte na sua totalidade.

O título, na sua forma imediata, apresenta portanto uma conjunção de temas antagônicos, que se relacionam talvez mas não de forma sequencial ou causal: a pedra como um bloco sólido, o vão como a corrupção desta solidez. Essa relação de tensão entre as palavras que compõem o título sugerem, como provocação talvez, o uso da forma gramaticalmente incorreta do verbo ir como uma maneira de se entender ou pelo menos de se aproximar da sensibilidade da artista. Se pedra, no singular, vão, no plural, a singularidade é fragmentada e o tempo, o movimento, e talvez mesmo a velocidade, a aceleração e seu inverso, são evocados. Na medida em que o singular, o eu, tende ao plural, ao outro, ele se expande, se dispersa, se espalha, se multiplica.

Laet responde a materialidade das coisas em momentos específicos, seja através da forma ou da falta de forma definida. A pedra por exemplo parece ser considerada como a ‘substância pedra’, e assim ela se apresenta de forma sólida, em fragmentos que são quase pó, ou em estados intermetiarios entre estes extremos, como no processo da rachadura, da fissura, do vão. O vão portanto não é especificamente a fissura da pedra mas a pluralidade dos possíveis movimentos em direção a, ou momentos dentro de, estados distintos da matéria.

A partir destas simples e imediatas anotações podemos concluir que a artista se preocupa com o escorrimento, com o tempo, ao mesmo tempo em que ela explora as relações de tensão causadas dentro de tais fluxos: Pedra Vão = pedra vai (no plural) Õ pedra fissura.

Laet encontra momentos de equilíbrio poético dentro de tais fluxos, onde a duração do escorrimento acaba sendo uma questão simplesmente de escala e tempo. Talvez seja por isso que a questão da escala dentro de seu trabalho seja tão importante, seja ela dentro do dispositivo da sua exposição, seja ela como o assunto da propria obra.

Encontramos esse interesse na escala manifesto de distintas maneiras: no tamanho ou peso do objeto ou dentro da juxtaposição dos materiais que possuem diferentes velocidades de transformação tais como nos líquidos (o mar ou o leite) ou nos sólidos (a pedra ou a areia). No entanto, ao estabelecer relações entre o estado das coisas dentro de momentos distintos dos seus fluxos, o que ocorre é uma separação, pois os objetos para estarem em equilíbrio, mesmo se tratarmos de um único corpo, necessitam-se de uma divisão de forças, de uma separação, mesmo que a nível interno de tensões. Esta é uma separação que ao mesmo tempo cria relação, que estabelece, apresenta e internaliza essa tensão. Não seria o caso portanto de objetos transitivos mas de objetos em transição. O mar vem, defaz, retorna: Pedra Vão = pedra fissura Õ pedra vai (no plural).

Tal observação abre a possibilidade de fazermos inúmeras metáforas. Tais ‘leituras’ do trabalho são entretanto melhores se deixadas ao espectador de desvendar, de projetar, de inventar por si próprio. A separação causada pelas características enigmáticas da obra, sua recusa de ser lida de forma objetiva ou singular, é tambem um meio de relacionar-se de forma íntima pois ela te convida à entrar nesta relação. A dinâmica interna da obra, suas tensões, seus conflitos e suas contradições, são neste sentido espelhadas na relação com o espectador.

Nesta exposicão Laet apresenta trabalhos que evocam noções de separação e relação através da materialidade própria dos objetos e substâncias, nos seus estados de ser distintos, seja na sua solidez ou na sua fragilidade, seja na sua solidez como fragilidade. Laet, como se com um olhar primeiro, de criança maravilhada com os mais ordinários detalhes e comportamento das coisas, talvez nos leve a pensar qual seria o objetivo desta tarefa? Não seria tudo isso em vão? Inúmeras respostas poderiam ser propostas, mas estas, uma a uma, apenas negariam as possibilidades poéticas do trabalho que são múltiplas. Aquilo que é apresentado é mais do que o singular, ele demanda o multiplo:

Pedra Ö Vão