Situação de água

 

[…] não será a ausência a mais certa,
a mais eficaz, a mais intensa, a mais indestrutível,
a mais fiel das presenças?
Marcel Proust

 

“Situação de água”. O que podemos derivar do título que batiza a mostra individual de Maria Laet? De maneira breve, podemos pensar esse elemento essencial com um duplo sentido, água como o que deixa sua marca na memória das coisas, por onde quer que passe e, ao mesmo tempo, aquilo que não tem limite nele mesmo, procura o movimento, escorre, transborda, é afeito a desconhecer fronteiras. Entre psicanalistas há uma expressão que diz “faz água” para quando o inconsciente vem à tona. Uma situação de água seria, então, aquela que flerta com os limites, sabendo que os mesmos nunca são fixos.

Ao deixar rastros, a água é prima da memória. Traços, marcas, gestos revelam traçados pelo mundo em cada obra de Maria. Suas ações parecem buscar uma linha sutil que separa coisas, pessoas. Linha que ora pode ser ultrapassada, promovendo o toque, a troca, ora pode demonstrar a impossibilidade da comunicação, do encontro. Mas aqui nada se conclui em definitivo. Como a água que não deixa ver seus limites, que transborda, há aqui esta ausência de borda, de fim. Habitar este lugar delicado e nos aproximar dele, recordar sua existência, eis o que se dá nos trabalhos aqui reunidos.

A obra de Maria tem como motor um desejo de doar espessura ao entorno, neste lance, a artista nos faz ver aquilo que media as relações entre coisas, corpos, falas. Para isso é preciso ir de encontro ao mundo e cravar no mesmo uma presença. Seja marcando com as mãos embebidas em tinta preta um par de pedras, irmanando a memória secular das mesmas com a vida humana destinada ao fenecimento, seja colocando lado a lado, como em uma conversa que se dá por murmúrios, a marca de duas palmas que olham uma para outra bem de perto, e ali vivem, flertando com o quase que é a morada do erotismo. Ao olharmos uma, entrevemos sempre a outra, o que era dois torna-se um (“Dois”).

Em “Sem título (Gangorra)” a própria artista surge em uma gangorra, em equilíbrio com uma pedra que lhe faz par no brinquedo. De forte voltagem poética, a imagem dá continuidade ao diálogo de Maria com os entes aparentemente inanimados, doando-lhes uma vida antes ausente, no lugar da pessoa, a pedra. Pedra que também evoca uma conversa sensível com o silêncio. É com ela que a artista trava o diálogo e encontra sua medida no mundo.

Esta medida, aqui, se dá com a consciência de que todo terreno é incerto. Trata-se de uma delicada e constante tentativa de equilibrar-se sobre a água. “Sopro”, série de quatro gravuras na qual uma mesma quantidade de tinta vai desaparecendo versa sobre este estado fugidio, para o qual a mais forte das presenças é aquela ausente.

Tal relação entre interior e exterior encontra-se no dipítico “Sobre o que não se contem”. No meio do grande papel branco, imaculado, um feixe que o corta ao meio e releva que do lado de lá existe algo pulsando. Aqui qualquer gesto mínimo pode deflagrar o rompimento daquilo que antes assegurava o limite. A contenção é somente pretexto para exibir a sua impossibilidade. Por isso o papel é ceifado e a tinta o atravessa, “faz água”.

Na série “sem titulo” (gaze), três impressões de gazes embebidas em tinta, com diferentes gradações, exibem tramas que mais uma vez evocam superfícies. Estamos diante de uma espécie de grid. Mas um grid que não é frio, tampouco avesso à vida, como aquele moderno, ao contrário, a gaze é uma trama usada para curar, cuidar, proteger, e surge aqui entremeada, desordenada, sua linhas retas ganharam curvas e misturaram-se umas as outras.

Em “Leito” vemos um leite escoar lentamente sobre um asfalto. Mais uma vez a conversa com o limite, no caso o chão que pisamos, o que nos sustenta, está posta em obra. Maria parece querer incomodar de vida, perturbar, acordar aquilo que encontra-se inerte, adormecido, como o asfalto mudo das ruas. Dar voz para estes entes silenciosos. Ao fim do vídeo, o leite é quase totalmente sugado pela pele árida que percorre. Note-se que em “Sobre o que não se contem” o movimento de irrupção ocorre de dentro para fora, já aqui acontece de fora para dentro.

O vídeo “Separação” revela mãos persistentes, num movimento lento mas constante, que tentam desmembrar dois fios pretos que formam um grande nó. Qualquer nó se dá somente quando algo ou alguém invade algum limite. O nó é o resultado de uma suspensão de fronteiras, intencional ou não. Maria afirma a um só tempo a existência dos nós como conseqüências inevitáveis de se estar vivo e a busca por desatá-los como igualmente necessária. Como uma fita de moebius, aqui não existe início, nem fim.

A tentativa de desfazê-lo mostra-se ainda mais árdua pela proximidade com que o gesto é realizado. A distância mínima evoca aquela que usamos para costurar, ler, comer, ou falar com alguém íntimo. Por serem fios da mesma cor, ambos pretos, torna-se difícil discernir cada um. A individuação é um processo necessário, porém penoso.

“Situação de água” é uma exposição coesa que nos entrega, de trabalho em trabalho, um único e extenso poema monocromático. A artista, em sua narrativa que equilibra-se sobre a água, sinaliza que é ali, no espaço em branco entre um verso e outro do poema, na pausa, no entre, na cesura, que habita o significado do que veio antes, e do que virá depois. Diante das obras de Maria Laet há que se ter olhos para as brechas e ouvidos para os murmúrios, todos grávidos de sentidos, prontos para doar espessura ao mundo.