Em várias partes do mundo a medição do tempo ficou encapsulada nos relógios, dispositivos mecânicos que sucederam o sol, as marés e a areia como formas de orientação temporal. Números também substituíram árvores, pedras, montanhas, córregos, na localização espacial de boa parte dos seres humanos, principalmente a partir da era digital. Na esfera social, as próprias pessoas viraram números em documentos e identificações digitais guardadas em nuvens formadas por dados criptografados e suas ideias são compartilhadas à mercê de algoritmos. O intrigante é pensar que se comparado com a idade da terra e a temporalidade da natureza, este modo de estar no mundo começou há apenas alguns minutos e pode desaparecer em ínfimas frações de segundos. Ao mesmo tempo em que a estruturação da vida radicaliza-se digitalmente, tornando a prática do poder mais imaterial, há um forte chamamento para uma outra maneira de encarar e atuar na natureza física.
Ao defrontar-me com os trabalhos recentes de Maria Laet estas questões sobre tempos humanos e não-humanos e percepções de mundos naturais saltaram logo aos meus olhos. Deparei-me com novas formas de marcar tempos e espaços a partir de uma escala individual com vocação coletiva. Também senti adentrar-me numa espécie de comunidade artística inter-geracional formada por artistas mulheres que não necessariamente conheciam-se ou partilharam experiências, mas que estavam e estão sintonizadas por identificações de questões, materiais e gestos. Acho bonito pensar em Maria conversando com Lygia Clark e Amélia Toledo sobre vestígios do corpo no mundo e do mundo no corpo, sobre como tornar visível estas interrelações, sobre como fazer pedras, ar e água expressarem vida e arte, sobre como delimitar sutilmente. Fico imaginando este diálogo ao ar livre, entre pedras, num ambiente de contentamento pelo encontro de pontos em comum. Elas estão em círculo, rememorando as reuniões de mulheres ancestrais.
Um conjunto de imagens de pedras, tornadas fotogravuras, parecem cartografar territórios. Uma delas chama-se Casa e é formada por um seixo e um espaço vazio gerado por sua deslocação. O tamanho da imagem remete-nos para as formações rochosas e as lagoas que caracterizam o Rio de Janeiro, terra natal da artista, sua casa. No entanto, a casa pode referir-se também ao espaço vazio que existe onde até outro momento albergava a pedra. Em outras fotos tornadas gravuras, a luz parece imergir de pedras, e, numa delas, uma fenda encontra-se em destaque. Imediatamente lembrei-me da falha tectônica em que se encontra Lisboa e que a qualquer momento pode mover-se, causando novo terremoto e tsunami. Se pudéssemos olhá-la de cima da estratosfera possivelmente seria muito semelhante a este rasgo na pedra. Para mim, este traço geológico é um contador de tempo desta cidade luz toda ladrilhada de pedrinhas e estas fotogravuras tornaram-se seu retrato. Consigo até ouvir um tic-tac ao pensar nelas (de um relógio ou de uma bomba?). Uma vida em espera.
Pedra do Real (2011) traz mais diretamente esta questão das temporalidades humana e natural que confluem. A fusão que advém da justaposição dos sulcos da mão com os das pedras marca não apenas comunhão e entrelaçamento destas existências, mas vestígios de tempos e presenças que se friccionam. Sem a pedra, a digital humana não persiste além do corpo que a gerou. Já a pedra permanece sem o humano. Esta obra é nomeada em referência aos Objetos Relacionais usados por Lygia Clark nas sessões de Estruturação do Self, entre eles pedras, conchas, ar, água e plásticos. Se nas investigações de Clark estes elementos são trazidos para gerar experiências corporais em seus clientes, nas obras de Maria Laet, a pedra e o ar são agentes de presentificação de fenômenos e de sua própria existência. Fôlego, trabalho composto por balão preenchido com todo o ar presente em seu pulmão no momento de seu enchimento, poderia ser uma resposta à indagação trazida por Lygia Clark desde Nostalgia do Corpo (1966) em que pedia para o participante soprar dentro um saco plástico, fechá-lo com um elástico e posicionar um seixo encima. Ao manipulá-lo com a mão, a pedra movia-se, à semelhança da respiração. Maria guarda o balão preenchido por seu fôlego numa caixa de vidro com a sua exata dimensão inicial. Com o passar do tempo, o sopro vai sumindo e consequentemente o balão vai diminuindo de tamanho. A cápsula de vidro permanece como vestígio desta mensuração extra corpórea do fôlego até o último suspiro.
Sobrecéu traz outro registro de tempos. O fotograma fica exposto à luz, o tempo necessário para que a imagem desejada pela artista se realize. Neste caso, os raios de sol passam pela copa de uma árvore, formando algo que mais parece nuvens. Maria Laet fotografa o resultado para congelar o instante e esta fotografia é posicionada ao lado do fotograma, que, ao longo do tempo vai mudando de cor até possivelmente a imagem desaparecer. Uma outra obra com e sobre ciclo de vida. Vestígios também informam Daquilo que não se vê, uma coleção de papéis que embalaram, protegeram, ampararam e/ou fizeram parte de outros trabalhos e processos. A gradação de tons de branco tanto diz respeito às especificidades dos materiais quanto ao seu tempo de existência e forma de uso. Trata-se de mais um convite à observação e contemplação do rastro e dos vestígios. A manipulação destes livros deixará novos resíduos e marcas. Uma outra maneira de assinalar o tempo e o toque. Muito provavelmente estes registros sobreviverão aos dados informacionais, ao mundo digital, a nós que estamos aqui neste momento.
Cristiana Tejo, Lisboa, Novembro de 2019.