MA: O trabalho que você apresenta nessa exposição parece estar aparte da maioria dos outros trabalhos que você produziu, os quais se apresentam, ou talvez se ofereçam seria a melhor descrição, ao meio que os envolve. Eu gostaria então que você falasse um pouco sobre a relação que seus trabalhos têm com a idéia de fluidez, literalmente a sua relação com fluidos e/ou gases.
ML: Os elementos na natureza falam muito da nossa relação com o mundo, com o outro e com nós mesmos. Me atraio pelos líquidos e gases pela sua vulnerabilidade em relação ao contexto, a sua capacidade de se envolver com os movimentos e espaços do mundo, e o fato de serem orgânicos, mutáveis e de uma forma inapreensíveis.
Pra mim é um pouco como nesse trecho de Francis Ponge (‘Le Parti pris des choses’, 1942), falando da sua percepção da água:
“Ela é branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em seu único vicio: o peso; dispõe de meios excepcionais para satisfazer esse vicio: contornando, penetrando, erodindo, filtrando. Dentro dela mesma esse vicio também age: ela desmorona incessantemente, renuncia a cada instante a qualquer forma, só tende a humilhar-se, a esparramar-se de braços no chão, quase cadáver como os monges de algumas ordens […] Poderíamos dizer até que a água é louca devido a essa necessidade histérica de só obedecer ao seu peso, que a possui como uma idéia fixa […] LÍQUIDO é por definição o que prefere obedecer ao peso a manter sua forma, o que recusa toda forma para obedecer a seu peso. E que perde toda sua compostura por causa dessa idéia fixa, desse escrúpulo doentio […] Inquietude da água: sensível a menor mudança de inclinação. Saltando as escadas com os dois pés ao mesmo tempo. Brincalhona de uma obediência pueril, voltando logo que a chamamos mudando a inclinação para este lado.”
MA: Então o trabalho da gaze atua como um corpo poroso, um aparato que quer dividir, mas que não consegue faze-lo totalmente, que indica talvez o limite de uma transição, que enfatiza essa ‘necessidade histérica’ na palavras do Ponge, ou talvez que marca o contorno de um movimento de outra forma invisível, como nos outros balões que estando quase livres, traçam e capturam o movimento envolta deles. É por isso que eu vejo aquele balão só, que fica ali aprisionado naquela caixa de vidro, como sendo tão diferente dos outros trabalhos. Você pode falar um pouco dessa distinção que existe na função do que no final nas contas é o mesmo objeto, um balão branco, mas que em um trabalho age como um objeto, uma escultura talvez, colocado numa caixa de vidro, enquanto em outros trabalhos age como parte de um aparato, a força motora desse aparato que traça um desenho quase que aleatório?
ML: Primeiro é todo o ar que cabe no pulmão, é o fôlego todo de uma pessoa. Começa como uma visualização (ou externalização) do nosso espaço interno, de um espaço vital. Ao mesmo tempo a tentativa impossível de apreender ou proteger esse ar, esse espaço. Nesse trabalho, tanto o balão quanto a caixa de vidro, falam dessa tentativa poética e ao mesmo tempo frustrada, da impossibilidade de segurar esse espaço, de separar totalmente o dentro e o fora. A medida em que o tempo passa, o balão se esvazia.
Nos trabalhos com o balão cheio de gás hélio já é, não só uma aceitação dessa impossibilidade, como também uma exposição (não proteção) desse ‘objeto’ em relação aos movimentos no mundo. Nesse caso o ar vem de fora do corpo, da natureza, se envolve nos movimentos do ar que é externo a ele e depois esvazia. Fala dessa vulnerabilidade ao contexto (ao gesto do outro) de uma forma mais viva, menos passiva talvez.
O balão passa de um oposto ao outro, talvez para falar de posturas que temos em relação ao mundo, e também dessa dualidade do dentro e fora.
A gaze e o balão são de alguma forma invólucros, como membranas, em geral a gaze em relação a pele e o balão em relação ao ar. É como se de alguma forma eles fossem a membrana de um espaço sensível, mas que não tem como apreender ou proteger, pois é tão frágil e fluido como esse espaço em si. Numa idéia de que não se pode proteger ou envolver as sensações todas internas, também não se pode envolver o ar, nem o tempo nem o espaço. Pode-se porém se deixar envolver com o ar, com o tempo e com o espaço.
Em relação ao balão que você diz na pergunta que estão “quase livres”, antes disso eu penso que eles estão em equilíbrio e/ ou desequilíbrio eminentes.
MA: Nos trabalhos com o balão cheio de hélio outro fator surge que é a dificuldade de localizar o trabalho. O que você considera ser o trabalho? É o objeto, que eu venho chamando de aparato? É a interação do espectador com ele? Ou é a documentação seja, o vídeo, a foto ou o próprio desenho em si ?
ML: O ‘objeto’ não é apenas um aparato. É um ‘corpo’ que fala de uma relação com o outro, com espaço e com ar.
É um trabalho que passa por diferentes meios, que podem existir juntos ou até, alguns deles, independentes. O processo porém, a principio, não é exposto.
MA: Parece haver uma certa modéstia no trabalho, na sua escala ou nos seus materiais. O quanto isso é intencional ?
ML: Talvez tenha alguma coisa a ver com o silêncio. Ou ainda com o fato dos trabalhos serem delicados e fluidos.
Fora isso, acho que é porque a história pra mim é mais uma coisa simples. É antes uma coisa muito simples do que uma coisa complexa no que diz respeito aos seus meios, seus ‘instrumentos’, a materialização ou visualização de um coisa, apesar do fato dessa ‘coisa’ nem sempre ser simples ou modesta. O processo dessa materialização é, em certa medida, simples; uma ‘rebuscação’ ou até uma ‘profissionalização’ do meio, pra mim, pode até atrapalhar, como que fixando um caminho para o trabalho, ou mesmo rendendo o trabalho a uma serie de exigências de ordem visual ou de significado.
Assim, essa modéstia a que você se refere, acho que é sobre uma simplicidade instintiva, que, pra mim, protege o trabalho de significados e referencias fechadas, ao contrario disso, me da liberdade pra experimentar, me envolver, como numa relação mais livre (e mais honesta), menos pré-determinada, com menos pré-requisitos ou pré-conceitos. Mantêm o trabalho ainda mais próximo da vida.
Em relação a intenção, esse entendimento vem sempre depois do trabalho. É assim que a coisa caminha pra mim.
MA: A minha primeira questão perguntava sobre como seu trabalho recente parece se oferecer ao ambiente. Eu gostaria de te perguntar finalmente, como você como artista, se relaciona com seu próprio meio? Como alguém que atua entre Rio e Londres, parece existir, mesmo que isso aconteça num nível inconsciente, uma relação com esses lugares que é consideravelmente distinta. O quanto isso depende da familiaridade ou não familiaridade do lugar (como nas imagens feitas no Parque Lage e naquele rio no Rio de Janeiro comparadas com aquela rua pós-industrial, abandonada, do seu vídeo onde só se vê a rua, as pernas e a sombra de uma pessoa, um monte de linha, e a sombra do balão com linha infinita que nunca entra em quadro) ou da progressão do trabalho propriamente dito.
ML: Acho que essa não familiaridade com tudo (espaço, ritmo, etc) fez, num primeiro momento com que os trabalhos tratassem muito de uma repetição automática, sem fim, num espaço qualquer. Depois de quase um ano, acabei voltando a atenção (e a liberdade) para os movimentos mais silenciosos que sempre me interessaram, que dizem mais respeito a questões internas do ser humano e dependem menos da cultura.