A obra de Maria Laet propõe uma suspensão no tempo. Somos levados para um estado de suavidade e delicadeza que em muitos momentos nos parece estar faltando em nossas vidas. Diante de um acúmulo frenético de informações que cada vez se tornam mais disponíveis, a obra de Laet nos encaminha para as singelezas do mundo. A escala do mundo inverte-se: voltamos para aquilo que era dado como supostamente imperceptível, menor ou desprezível. Costurar a areia da praia ou a neve, criar um estado de hipnose no espectador ao ponto dele emocionar-se com o ritmo lírico do leite escorrendo por uma pequena fresta na calçada ou ainda atentar ao movimento e ao som da maré são atributos da delicadeza e desse regime anti-espetaculoso que Laet promove. É curioso porque em várias situações decorrentes em sua obra a nossa perspectiva (olhar) é dirigida para baixo. Presenciamos movimentos, leituras e sintomas de um mundo que acontece sem nos darmos conta. Em Leito (2013), por exemplo, a superfície da cidade transmuda-se e logo passa a ser confundida em uma espécie de pele com todas as suas imperfeições e reentrâncias. Ao derramar o leite, a artista transforma a fresta de uma calçada ou de uma rua em um canal ou veia cujo fluído, e não mais leite, passa a percorrê-lo. O rio de Laet é dono de um saber absoluto, não permite rascunho, pois é um fluido constante, não “olha para trás”. Ademais, a forma como opera a duração do tempo em seus filmes, o ritmo monótono e lento, emprega uma circunstância de investigação sobre o tempo. Tedioso mas concomitantemente variável, essa qualidade de tempo torna visível a alteração da paisagem e as suas nuances. O que era da ordem da razão e da opacidade, pouco a pouco torna-se claro e vira corpo, isto é, lentamente percebemos que aquele espaço enigmático é um fragmento da cidade, que não é qualquer um, pois possui em si mesmo uma estrutura que poeticamente assemelha-se a superfície da pele. Aqui está um dos interesses da artista: revelar uma qualidade poética de corpo nas coisas. A fenomenologia emprega a visão não como um processo de registro e de ‘determinação’ das coisas, nem movimento restrito à vontade de uma consciência absoluta, mas como movimento imanente no corpo. O mundo tem sentido, porque é feito numa visão que o atualiza a cada instante.
O enigma reside nisto: meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer no que está vendo então o ‘outro lado’ do seu poder vidente. Ele se vê vidente, toca-se tateante, é visível e sensível por si mesmo (…) o mundo é feito do próprio estofo do corpo.[1]
Em Sobre o que não se contém (2013) o registro de um fluído percorrendo um corpo ou uma ferida em aberto permanece. Com um repertório de traços e gestos mínimos, a artista transforma “coisa” em corpo, uma situação que é abordada também em Seesaw (2013). A adoção de uma escala intimista engendra proximidade. Seus gestos nunca são banais ou despretensiosos porque convertem-se em metáforas potentes sobre a presença de uma carnalidade nas coisas, nos objetos inanimados. Como o rasgo que faz “sangrar” a tela na série Concetto Spaziale de Lucio Fontana, o gesto de Laet, mais sutil mas não menos forte, traz uma leitura sobre a conversão do papel em corpo, e a linha em carne. Já em Seesaw, o vídeo transmite uma sensação de congelamento do tempo e das ações ao viabilizar o estado de equilíbrio e diálogo entre artista e pedra, pois ambos convergem para o mesmo estado e são simultaneamente corpo e coisa. Nada sai do lugar, há um completo estado de pausa, como se um intervalo na rotina do mundo fosse criado, e tudo o que habitasse essa dimensão ganhasse o mesmo peso e qualidade. Este momento é quebrado em duas circunstâncias: quando uma folha caindo traz o silencioso despertar das coisas e no desequilíbrio da artista. Ambas as situações são as provas do real.
Índices sobre o corpo que se mantêm presentes em 4 obras que separo em duplas. Tanto em Sem título (pele) (2013) quanto em Sem título (Série Polaroids) (2009) temos a imagem metafórica de uma pele. Se na primeira obra, o título já oferece essa imagem, na segunda a polaroid parece “descascar-se”: a obra acontece pela destruição e separação de duas camadas do filme que se dão pelo movimento da mão da artista que as separa. É importante ressaltar que mesmo sendo impressões, nas duas obras a instância do desenho é o que se sobrepõe. Em Pele, a monotipia da gaze[2] revela a ação de um tecido fino e transparente que ao menor deslocamento sofre uma série de interferências e texturas em sua estrutura. É essa característica orgânica, biológica, mole, delicada e velozmente permutável que interessa à Laet: a possibilidade de promover ritmos e fisicalidades distintas àquele grid que logo transforma-se em uma metáfora sobre a corporeidade. Em Polaroids, as condições não são distintas. O desfazer daquelas camadas/peles remete a uma espécie de elasticidade orgânica que a impulsiona no sentido da produção de novas formas.
Em Sopro (2013) e Dois (2012), persiste a ideia de uma artesania, isto é, uma suave aparição dos gestos que compõem a obra, uma persistência no mínimo, na eficiência do quanto o pouco pode soar e se apresentar como o todo. Essa característica pode abranger uma constelação de obras com especificidades tão próprias e diversas como as de John Cage, Eva Hesse e Agnes Martin. Artistas que têm o silêncio como mote em suas operações. Nesse instante, é perspicaz o diálogo que Laet realiza com o poema concreto Galáxias de Haroldo de Campos. O poema, que não possui pontuação, prevê a possibilidade de múltiplas ordens de leitura dos versos que seguindo essa visada, transformam-se em fragmentos. Na última edição do poema, há um CD encartado onde o próprio poeta lê 16 páginas da sua obra, que segundo ele deveria em ser lidas em voz alta, como um livro canção. São essas páginas que compõem a obra da artista. No trabalho da artista, os furos correspondem aos silêncios que pontuam as breves pausas que o poeta realiza ao ler o poema. Como acentua a artista:
É também a medida do corpo (a respiração) que dá, através do silêncio, ritmo, e até sentido ao texto, à fala, à leitura. Os furinhos no papel correspondem às pausas nessa leitura, nas quais leitor e texto respiram. São espaços de respiração, tornam visível o invisível, e nesse sentido, de novo o papel como pele, como o limite que não é limite, como limite aonde se dá o encontro. Os furinhos são aonde o próprio papel respira, por onde passa luz e ar.
Sopro e Dois são vestígios de corpo, digitais que se eternizaram para o mundo. Sopro corporifica o imaterial e resguarda a sua própria ação. Mesmo impresso, o ato de expulsar o ar está lá e em constante transformação, como se pudéssemos presenciar esse deslocamento invisível ao olhar humano. Já Dois são duas monotipias das mãos de duas pessoas gravadas em uma mesma folha de papel, cada uma em lado desse suporte. Nesse entrelaçamento de linhas – daí a sua proximidade com Separação (2013) – uma terceira via ou desenho torna-se aparente. Finalmente, o interesse por materiais frágeis, ou em determinados casos uma situação de imaterialidade que se torna visível, é operado de maneira quase artesanal – costurando, torcendo, soprando etc. – se associando à pesquisa da forma e às sugestões corpóreas que as obras sistematicamente oferecem.
[1] MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. In: _______. Husserl e Merleau-Ponty. São Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 278-279.
[2] Fina bandagem de tecido usada em curativos.