Poro

 

“Dissolvendo a cortina das palavras

Tua forma abrange a terra e se desata”

Carlos Drummond de Andrade, “Contemplação no Banco”, Claro Enigma

 

I

Escrever textos sobre trajetórias artísticas, na maioria dos casos, é uma operação defasada. Além do risco inerente de fotografarmos apenas o momento de algo ainda em movimento, as palavras procuram recompor aquilo que a imagem já afirma por si. A escrita, nesse espaço expressivo, precisa encontrar formas de, simultaneamente, recortar e ampliar o escopo de leitura daqueles que entram em contato com a obra. Os recursos são muitos: biografias, análises técnicas, contextos históricos, métodos comparativos, abordagens biográficas. Torna-se necessário, portanto, fazer com que o texto inteligível seja uma força suplementar naquilo que busca o limite do sensível.

No caso deste livro, dedicado ao trabalho de Maria Laet, a escrita atravessa mais de dez anos de produção ininterrupta e profícua. Qualquer um dos caminhos indicados acima, sem dúvida, ajudaria a introduzir uma apreciação qualificada de suas obras. Mas assim como textos podem modular múltiplas leituras, trabalhos artísticos também podem sugerir, na sua própria materialidade, outras escritas. E este é o caso aqui em questão.

A arte de Maria Laet nos propõe uma série de camadas para a fruição dos sentidos. Para além do olhar, precisamos sempre imaginar um encontro de corpos, uma dinâmica de gestos, uma respiração suspensa pela apreensão do instante, um olho fixo no chão que percebe os arredores do que nos escapa em tal situação. Alguns textos escritos sobre seu trabalho indicam de forma certeira um ponto vital e incontornável: um pensamento silencioso sobre as superfícies e seus limites. Destacam divisões, fusões, membranas, peles. São estratégias textuais para abordar diversas situações propostas por sua topologia do sensível, sintetizada pela própria artista, neste livro, em uma palavra: poro.

A palavra localiza com precisão essa fronteira móvel de espaços, pois atua tanto em superfícies (a pele das coisas) quanto nos interstícios das mesmas (dentre as coisas). A porosidade, ou seja, a qualidade de ser fronteira permanente de um entre — entre mundos, entre vidas — sempre funda na obra de Laet um horizonte poético, e político. Ela faz da arte um cuidadoso mergulho do olhar, tanto sobre o risco aberto da estabilidade, quanto sobre a persistência paciente do que é fugaz.

Escrever com seu trabalho, portanto, pode ser uma experiência em que distintos registros se entrelaçam, prolongando sua porosidade estética em uma escrita sem limites entre o objeto e fabulação. A própria artista põe em prática tal porosidade ao afirmar que, algumas vezes, poemas são motores criativos, motes imagéticos ou nomes fundadores de obras ou exposições. Palavras e imagens são poros de uma ideia maior — um corpo sobre e entre mundos que ganha forma através da obra de Maria.

 

II

Soprar, rasgar, gotejar, costurar, dobrar, perfurar, preencher, esvaziar, imprimir, atritar, equilibrar, infiltrar, decantar, riscar, impregnar os papéis, o mar, a areia, o asfalto, a terra, a neve, a chapa, a pele da natureza.

 

III

Há, em boa parte dos trabalhos de Maria, um jogo entre acasos e materiais. Sem precisar se filiar a heranças da história da arte, porém sem ignorar que todo artista forma seu próprio universo de referências, tal jogo é fiel a uma prática artística em que o cerne do processo de criação é o embate investigativo com a matéria. Nessa dinâmica entre as mãos e o material, o fazer em sua repetição artesanal pode ser maior do que a vontade de definir antecipadamente o produto final e sua execução. É na surpresa do que a criação apenas supõe que se oferecem as condições paradoxalmente precárias e potentes para o que irá acontecer. Mesmo em suas costuras, cujo perímetro traçado ou o local escolhido geralmente são frutos de ideias prévias, o ato de fincar o anzol-agulha e de atravessar a linha no solo não são garantidos em sua certeza. Aparecem resistências de todo tipo. Cada caso exige um esforço diferente, um controle negociado do gesto. A fugacidade do ato de costurar a superfície do mundo move uma energia ampla para a artista, demanda uma dedicação física quase ritual. São trabalhos que brotam de atos persistentes — como as monotipias feitas a partir de percursos repetitivos, as marcas de seus passos no chão (Caminho), ou ainda os rastros de tinta produzidos a partir de sopros na superfície do papel (Sopro). O que é visto como resultado nunca nos transparece o esforço interno em sua feitura.

Esse jogo ganha dimensões cósmicas quando os elementos estão no mundo, sem a intervenção manufaturada ou o ato criativo como produtor artesanal de uma imagem. É o caso dos trabalhos em que os elementos naturais e suas dimensões físico-químicas são percebidos, recolhidos, adotados, guardados. Antes de tudo, é preciso vê-los. Colher pedras em rios pode parecer um gesto banal, quase despretensioso. Fazer das pedras singularidades em textura, peso, tamanho ou cor, porém, demanda um olho amoroso pelas coisas do mundo.

Esse amor pelas coisas que passam desapercebidas não escolhe entre a presença maciça da pedra ou efemeridade viscosa dos pés na areia. É um processo de atenção afetiva que dá espessura ao breve, ampliando nossas dimensões orgânicas. Ao se deixar disponível aos fluxos da natureza, o trabalho de Maria cria uma intimidade molecular com o mundo. As pedras que cabem em uma mão fechada, ganham as marcas da palma de tinta e fazem de uma monotipia muito mais do que a impressão de uma superfície sobre a outra. Ali, a marca pinta uma coisa só, ato em que a memória da pedra se junta à memória do gesto da artista. São pedras do real, isto é, presenças que ficam como evento único (fechar a mão com tinta ao seu redor) e ganham a força de uma existência.

Essa espessura do breve também pode ser vista em obras de Maria que capturam brechas das horas, oscilações instáveis da natureza e de nossa vista em contato com ela. É o caso de trabalhos que sustentam pelo tempo de um vídeo minutos únicos — como o da luz do sol recortando o bojo da folhagem de uma palmeira (Poente). Tal imobilidade — do olho que vê através da câmera parada — é prenhe de movimento. Novamente, a persistência é um dos métodos fundamentais de uma artista que enxerga com cuidado. Uma luz poente não se repete todo dia com a mesma intensidade ou mesma temporalidade, assim como não se repetem os ritmos dos ventos ou a forma das franjas de uma maré. Apesar de tudo ser rotina, nada garante o mesmo. E se for o mesmo, nada garante que seja percebido na sua beleza. Eis aí o jogo que o trabalho de Maria se coloca: produzir uma atenção lírica e certeira, cujo gesto mínimo eterniza o efêmero e demonstra que nada é igual, mesmo aquilo que sempre está, supostamente, no mesmo lugar.

Essa qualidade de entender o instante como algo ligado a uma diferença dentro de uma repetição pode, inclusive, registrar ausências. Sentimento abstrato cuja materialização do que falta o torna paradoxalmente inexistente, a ausência não pode fazer corpo. Mas deixa sempre uma marca. Aqui, são as marcas dos pés na beira do mar, cujo desaparecimento iminente se torna a imagem daquele que lá esteve — ou melhor, que acabou de estar. Marcar o pé, perder a marca, voltar a marcar, voltar a perder, um jogo de perde e ganha das formas que, no olhar da artista, pode ser transformada na fantasmagoria de alguém que ali esteve e não está mais. A presença de uma ausência.

 

IV

Todo artista desenvolve ao longo de sua trajetória um repertório particular. De suportes, de materiais, de gestos. No caso de Maria, tal procedimento produz, ao invés de expansões, concentrações. Ela trabalha, novamente, numa espécie de exaustão silenciosa daquilo que manuseia. Papéis finos, gazes, tinta preta, alimentam uma miríade de procedimentos. São saturações, fissuras, dobras, ações que exploram ao limite as possibilidades dessas superfícies multiplicadas. O claro-escuro que dá o tom da maioria de seus trabalhos concentram nosso olhar no essencial, ao mesmo tempo em que ilude o que estamos vendo. Afinal, é evidente a tinta preta impregnando o papel, mas não é claro como a mesma foi parar ali.

A economia de cores e materiais potencializa a investigação dos mesmos. Observar a mancha de nanquim expandir lentamente por conta de uma vizinhança de superfícies, operação que detona uma série de trabalhos da artista — como em Diálogos (sopro) —, indica esse procedimento de infiltração. Tal procedimento transforma cada folha de papel em camadas únicas dessa trilha do preto. Novamente, presença, rastro, memória, a marca perene do mínimo, tudo se entrelaça nessas operações em que é preciso deixar com que as coisas façam contato, a seu tempo. Porosidade e infiltração são pares fundamentais para Maria, não só nos seus sentidos físicos, mas principalmente em suas dimensões ampliadas, forças poéticas que fazem com que seu trabalho ganhe essa densidade leve, essa força frágil, esse brutalismo lírico.

 

V

Igualar seu peso a uma pedra. Transferir o que faz de você uma massa para outra existência. Imóveis, Maria e a Pedra medem uma força perfeita. O balanço, ali, não se limita ao objeto que produz o equilíbrio entre corpos. Há também o balanço entre formas existentes, uma espécie de fusão entre vida animal e vida mineral, olhos nos olhos, mirando o que os une: o peso de existir.

 

VI

Dentre esse repertório desenvolvido por Maria, uma forma-ideia atravessa diversos modos e suportes. A linha, traço que ata e divide, força fundamental que organiza e desorganiza corpos e mundos, se faz presente nas costuras de areias, terras e neves ou nas viscosidades entre brechas do asfalto. Mas também está no emaranhado de um nó ou na tessitura de uma gaze. São elas que definem a tênue espessura (complementar a espessura das pedras ou da luz na palmeira) desses suportes e gestos propostos pela artista. No limite, tudo pode ser grid, tudo pode ser alinhavo, fio solto, costura. Linhas que formam espirais e (se) atravessam limites.

Nas suas diferentes costuras, a linha que divide o espaço também define uma presença multiplicadora. Elas abrem uma outra superfície — ao mesmo tempo cerzida e cindida — que libera nosso limite móvel entre um dentro e um fora da existência. A linha costurada rasura nossos limites entre alto e baixo, entre sobre e sub, entre a vida e a morte. Como se o ato de atar o solo atasse, também, planos de existência. Nessa operação, costurar os espaços em que pisamos faz com que eles se tornem expostos. Entre a linha que costura e a linha que forma o horizonte infinito do chão, se instala a espiral metafísica entre mundos. A linha branca que atravessa a pele mutante da areia (Notas sobre o limite do mar) forma uma trança de planos e tempos — entre o que junta e o que nunca permanecerá junto.

Se as linhas das costuras são atos que demarcam e multiplicam planos, os líquidos brancos escorrendo por entre frestas de asfalto fazem o mesmo sem a necessária mão-agulha em combate com a densidade do solo (é fundamental ver os vídeos de tais ações). Ali, o desenho é fruto do traço instável de uma falha do mundo plano. A linha se faz imagem quando preenchida pelo fluido que escorre nas frestas do solo. Escalas e gestos completamente diferentes, ambos, porém fazendo com que um espaço terceiro seja fundado. Quando exibidas em fotografias (como na série Milk on Pavement), Maria faz com que o horizontal abaixo dos pés se torne plano frontal, congelando o que escorre e desafiando a gravidade. Na imagem, a linha branca devora o que lhe constrange o fluxo e, de fundo, torna-se frente. Somos contaminados através da vista com o fiapo de cor a imaginá-lo, insidioso, tomando conta de cada reentrância do mundo.

As linhas também se entrelaçam em fazimentos e desfazimentos constantes. Alguns trabalhos desarrumam os limites daquilo que o fio organiza. Suas gazes na água (Gaze e água), por exemplo, nos apresentam linhas em sua desordem de movimentos, esgarçando aquilo que antes era trama. Há também o Vestido feito pacientemente de pequenas gazes costuradas uma a uma, as monotipias feitas com o mesmo material (Gaze), obras que revelam um grid de geometrias sinuosas, esburacadas, irregulares. Já no vídeo Separação, a linha permanece em um jogo de impossibilidades: quanto mais buscamos separar o que está confuso, mais vemos a inutilidade de um gesto que, no limite, quer restituir essa linha em sua individualidade que organiza. Um emaranhado que se desloca da impossibilidade de ordem para a afirmação do caos.

 

VII

As coisas dançam. O balão desenha um diálogo através da dança proposta pelo corpo que desloca o ar ao seu redor. A gaze dança sobre a pele incontrolável da água. O leite dança dentre as ranhuras do chão. As bolas dançam em sua desordenada propagação. As ondas dançam desenhando linhas na beira do mar, a mancha da tinta dança ao sabor do sopro. Mais do que fazer as coisas dançarem, essas obras sugerem que qualquer movimento já é uma forma de se colocar em estado de dança no mundo.

 

VIII

Ainda no entrelaçamento entre a obra e a escrita deste texto, é necessário evocar a respiração como outro gesto importante. Respirar enquanto forma de diminuir o ritmo frenético dos fluxos ao nosso redor. Observar o movimento da luz e seus abismos da superfície é uma forma de respirar. Aguardar a infiltração do nanquim no papel, costurar por horas algo que a maré irá, em algum momento, cobrir. Todas essas práticas são respirações. Nesses casos, porém, o ato de respirar ganha conotação contemplativa.

Há trabalhos de Maria, porém, em que tal ato fundamental ganha dimensões mais concretas — e complexas. Em Pneuma I, vídeo em que o músico toca uma tuba cuja boca está coberta por uma película translúcida, faz do ato de respirar um bloco sonoro em que o sopro do ar ganha corpo. A tuba torna-se um pulmão enquanto o ato de tocá-la produz sua inspiração e expiração. Observar a película inflar em seu limite e recuar em sua vaziês é fazer um corpo interno através dos olhos. Sentir um pulmão que é som. Ao mesmo tempo, as luzes que incidem em tal película dão ao pulmão sonoro da tuba a imagem acústica de uma respiração.

Respirar, portanto, pode ser tanto uma desaceleração do tempo quanto uma produção de espaço. Em Fôlego, um balão de gás é enchido com uma única expiração e retido — entre beleza e aflição — em um cubo de vidro. Restringir o espaço expansivo de um objeto pleno de leveza dá densidade ao ato efêmero dos pulmões e materializa uma extensão poética de existências (como no equilíbrio com a pedra). Em seu pleno aproveitamento de elementos que já se encontram no mundo, o uso do ar em suas diferentes materialidades faz com que Maria possa explorar diferentes corpos gasosos. Se na tuba sua boca gigante inventa pulmões de luz e som, balões desenham porque estão suscetíveis ao ar que os cerca.

 

IX

Na série de livros intitulados Daquilo que não se vê, a artista produziu brochuras feitas de sobras de variadas texturas de papel: vegetal, japonês, manteiga, cristal, jornal, alcalino, na maioria, papéis baratos e em branco, carregando marcas do tempo através de mofos e rasgos. O vazio — de imagens ou palavras — é preenchido pelas marcas de manchas, dobras e amassados que se encontram em cada página observada. Suas superfícies apresentam ora de forma sutil, ora de forma intrusiva, vestígios do que não está ali. Como na ausência dos pés na areia, aquilo que não vemos são os processos que transformaram tais restos de folhas em uma espécie de periferia existencial dos pedaços de papéis aproveitados. O livro vazio de Maria transforma negativos em positivos, sem precisar oferecer nada mais do que aquilo que sobrou. Suas páginas reunidas produzem uma outra instância performática daquilo que vemos em sua obra. Uma dimensão entre o sono e a vigília, que retém o que escapa. E o que os amarra, delicadamente, são linhas em sua permanente costura de memórias, espaços e existências.

 

X

Instalar-se em um espaço entre as coisas produz uma existência cujo trânsito precisa ser constante. De um plano ao outro, o que se instala é um fluxo em que tudo que existe simplesmente é. Sem profundas metafísicas ou sentidos obscuros, o que vemos é aquilo que está ocorrendo no momento. Esse registro de existências efêmeras presente no trabalho de Maria, marcas que desenham e imprimem tempos em monotipias, infiltrações e vídeos, faz com que esse espaço de trânsito seja constante. O trânsito entre pesos do corpo-pedra, o trânsito entre planos nas costuras, o trânsito entre o ar e o som da tuba, todos são formas de apresentar a beleza desse mundo intersticial. Mais do que explorar as superfícies das peles, a artista cria um espaço-tempo em que terra, água, ar, luz, pedras, papéis, memórias e sons estão em pleno movimento. Ao explorar o que habita a superfície do mundo, Maria Laet também consegue nos arremessar no intervalo das coisas que o compõe. Pele e poro.