Devagar e sempre

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Um sintoma relevante presente no atual circuito da arte no Brasil é uma demanda desenfreada por “jovens artistas”; como se tal expressão soasse como uma espécie de grife e fosse utilizada como uma “mercadoria” bem vinda. Galeristas seguem ávidos procurando novos nomes. Curadores, idem. Uma das consequências deste sintoma, em tudo correlato à natureza do capital, é a de colocarmos no mundo de forma demasiadamente precoce muitos artistas, e, em alguns casos, artistas ainda sem obra. Ou seja, é preciso cuidado na aproximação com uma produção em seu estado inicial diante de um contexto como este.

A mostra em cartaz na Galeria A Gentil Carioca La, “O que Vive é Espesso”, de Maria Laet (1982), exibe um recorte da obra de uma artista cujo percurso vem sendo maturado lentamente ao longo dos últimos oito anos. Esta sabedoria no manuseio do tempo de sua trajetória talvez seja um reflexo da natureza mesma do trabalho realizado por Maria. Com curadoria de Frederico Coelho, a exposição revela uma obra que vai na contra mao do espetáculo, sendo permeada pelo signo da delicadeza, bem como de uma certa salutar lentidão. Tudo ali se mostra aos poucos, e nos demanda, igualmente, um tempo dilatado para que possamos entrar em seu universo.

A arista apresenta aqui uma reunião concisa de trabalhos recentes. Estão ali presentes as principais características do trabalho da artista, tais como o olhar cuidadoso que faz do mundo o receptáculo de suas intervenções, o tempo dilatado, o corpo como membrana que se torna co-autora de diversas obras, a linguagem lembrada no ponto em que ela encontra o seu limite ou evoca possíveis, pequenas e breves salvações e as tentativas de reter aquilo que é efêmero.

O título da mostra tem inspiração em um trecho do poema “O cão sem Plumas”, de João Cabral de Mello Neto. O curador nos lembra, em seu texto para a mostra, que ali, na tessitura do poema, o que vive “incomoda de vida o silêncio, o sono e o corpo”. Maria, por sua vez, parece querer, em cada trabalho, incomodar de vida, perturbar, acordar aquilo que se encontra em silêncio, inerte, adormecido. Por isso trabalhos como “Sem título (linha e neve)”, no qual vemos uma fotografia de uma chão costurado repleto de gelo. Costurar o gelo, costurar a areia, são ações que se tornam fotos que buscam tornar vivo, animado, aquilo que do contrario estaria fadado ao esquecimento, ao uso comum, trilha para algum lugar. Maria faz da travessia o centro da atenção. Costurar um chão nevado é uma ação inútil e grávida de poesia. Mas é justamente na inutilidade – em uma época marcada pela necessidade de tudo, a todo o momento, ter uma finalidade – é onde reside a diferença da arte. Não custa relembrar a belíssima passagem de Hannah Arendt a respeito desta dimensão: Os únicos objetos que parecem destituídos de fim são os objetos estéticos, por um lado, e os homens, por outro. Deles não podemos perguntar com que finalidade? Para que servem? Pois não servem para nada. Mas a ausência de fim da arte, tem o “fim” de fazer com que os homens se sintam em casa no mundo”.

Doar espessura para o entorno parece ser o desejo movente dos trabalhos da ainda jovem artista; e, neste mesmo lance, quem sabe lograr, sem ter garantia alguma, a sensação se se sentir mais em casa no mundo. Para isso é preciso ir de encontro a ele. Seja marcando com as mãos embebidas em tinta preta um par de pedras, irmanando a memória secular das mesmas com a vida humana destinada ao fenecimento, seja testando os limites da linguagem em série de cadernos na qual as palavras são escritas, apagadas, e reescritas; revelando assim a dificuldade em irromper o silêncio, como que precisando fazer e desfazer, e fazer novamente, para desta forma mostrar as possibilidades e as limitações da tentativa de edificar aquilo que se encontra em estado latente.

Na fotografia “Sem título (Gangorra)” a própria artista surge em uma gangorra, em equilíbrio com uma pedra que lhe faz par no brinquedo. De alta voltagem poética, a imagem dá continuidade ao diálogo de Maria com os entes aparentemente inanimados, doando-lhes uma vida antes ausente, no lugar da pessoa, a pedra. Pedra que também evoca uma conversa sensível com o silêncio. É com ela que a artista trava o diálogo e encontra sua medida no mundo. Maria Laet surge assim como uma jovem artista possui olhos e ouvidos atentos para perceber que o murmúrio, em meio ao estardalhaço contemporâneo, pode ser mais bem escutado do que mais um berro em meio a cacofonia generalizada de nossos tempos.